terça-feira, 3 de agosto de 2010

Iraque: a ruína que será deixada para trás



Patrick Cockburn
CounterPunch

No dia 14 de junho, um intérprete chamado Hameed al-Daraji, que trabalhava para o exército dos EUA, foi morto a tiros enquanto dormia em casa em Samarra, a 100 quilômetros de Bagdá. Em alguns aspectos, não havia nada de estranho no episódio, já que 26 civis iraquianos foram assassinados em diversas partes do país no mesmo dia. Além de trabalhar periodicamente para os norte-americanos desde 2003, Al-Daraji pode ter se convertido recentemente ao cristianismo e cometido a imprudência de usar um crucifixo no pescoço - gesto suficiente para transformá-lo em um alvo na terra dos sunitas.

O que fez os iraquianos, tão acostumados à violência, dar atenção especial à morte de Al-Daraji foi a identidade do assassino. Preso logo depois que o corpo foi encontrado, seu filho teria confessado o assassinato, explicando que o trabalho e a mudança de religião do pai haviam trazido tanta vergonha à família que não restou alternativa a não ser matá-lo. Um segundo filho e um sobrinho de Al-Daraji também são procurados pelo crime. Afirma-se que os três jovens teriam ligações com a Al-Qaeda.

O caso ilustra como o Iraque continua sendo um lugar extraordinariamente violento. Sem que o restante do mundo prestasse muita atenção, cerca de 160 iraquianos foram mortos e centenas foram feridos nas últimas duas semanas. As vítimas civis no Iraque ainda são mais numerosas do que no Afeganistão, embora nos últimos dias o segundo venha recebendo atenção quase exclusiva na mídia. Mas o assassinato de Al-Daraji deveria servir de advertência para quem imagina que a ocupação norte-americana do Iraque de algum modo se acertou nos últimos anos, e as forças de combate dos EUA poderiam até mesmo ficar no país além da data programada para a partida, 31 de agosto. Todos os soldados norte-americanos remanescentes devem sair até o final de 2011, segundo o Acordo de Status das Forças assinado pelo então presidente George W. Bush em 2008, em seus últimos dias na Casa Branca.

O país que os soldados norte-americanos deixam para trás é um resto de naufrágio que mal consegue flutuar. Bagdá parece uma cidade sob ocupação militar, com terríveis engarrafamentos provocados pelos 1.500 postos de revista e ruas bloqueadas por quilômetros de muros de concreto antiexplosões que sufocam as comunicações dentro da área urbana. A situação no Iraque está, em muitos aspectos, "melhor" do que estava, mas não poderia ser diferente, dado que os assassinatos, no auge registrado em 2006-2007, eram cerca de 3.000 por mês. Dito isso, Bagdá continua sendo uma das cidades mais perigosas do mundo, onde caminhar é mais arriscado do que em Cabul ou Kandahar.

Herança maldita

Nem tudo é culpa dos atuais líderes políticos. O Iraque se recupera de 30 anos de ditadura, guerras e sanções, e a recuperação é desesperadoramente lenta e incompleta porque o impacto dos múltiplos desastres que atingiram o país a partir de 1980 foi enorme. Saddam Hussein despejou dinheiro na guerra que ele próprio provocou contra o Irã, deixando os hospitais e escolas sem nada. A derrota para a coalizão liderada pelos EUA no Kuwait motivou o colapso da moeda e 13 anos de sanções da ONU que representaram um verdadeiro sítio econômico. O Iraque nunca se recuperou dessas catástrofes. Quando a ONU tentou organizar a substituição de equipamentos nas usinas de energia e tratamento de água nos anos 1990, os fabricantes originais disseram que as instalações eram tão antigas que as peças de reposição não eram mais produzidas.

Durante o período de sanções, o governo ficou sem dinheiro e parou de pagar os funcionários, que passaram a cobrar por seus serviços. Hoje, eles têm bons salários, mas a velha tradição de não fazer nada sem suborno não morreu. Níveis extremos de corrupção tornam o Estado disfuncional. Para dar um pequeno exemplo: uma amiga que leciona em uma universidade em Bagdá engravidou e pediu um mês de licença remunerada para ter o bebê, como era seu direito. Os administradores da universidade disseram que ela poderia sair de licença, mas só se entregasse a eles o salário do mês. O que torna o efeito da corrupção no Iraque tão devastador é o fato de ela paralisar o aparato estatal e impedi-lo de desempenhar suas funções mais essenciais. Em 2004-2005, por exemplo, o orçamento de aquisições militares de 1,2 bilhão de dólares foi integralmente roubado, embora isso pudesse ser explicado pelo caos dos primeiros anos do Estado iraquiano pós-Saddam, com os norte-americanos dando muitas ordens e ninguém sabendo ao certo quem realmente tinha o poder.

Cinco anos depois, é razoável pensar que as aquisições militares teriam melhorado, especialmente no que diz respeito a equipamentos essenciais para as forças de segurança. Aqui, não existe prioridade maior para o governo do que deter os suicidas da Al-Qaeda que invadem o centro de Bagdá com veículos cheios de explosivos e os detonam diante de ministérios, matando e ferindo centenas de pessoas.

Sucata antiterror

Os iraquianos sempre se perguntam por que os terroristas conseguem passar por tantos postos de revista sem despertar suspeita. Ao longo do último ano, ficou claro que existe uma razão simples para isso, que explica muito da fraqueza da máquina estatal iraquiana. O trabalho de manter os homens-bomba fora de Bagdá foi, para dizer o mínimo, debilitado porque o principal dispositivo de detecção de explosivos usado por militares e policiais é uma fraude comprovada. O governo pagou grandes somas pelo detector, chamado de "sonar" pelos iraquianos, embora ele venha sem fonte de alimentação - e supostamente a receba do homem que o segura, que deve arrastar os pés para gerar eletricidade estática.

Por mais inútil que seja, o "sonar" (uma alça de plástico preto da qual sai uma vareta prateada que lembra uma antena de televisão) é o principal método pelo qual os veículos suspeitos são revistados pelos soldados e policiais em Bagdá. Se armas ou explosivos estão presentes, a vareta deve inclinar-se em sua direção, funcionando do mesmo modo que uma vara divinatória usada para encontrar água.

O que mais surpreende em relação ao detector de bombas, oficialmente conhecido como ADE-651, é que ele tem sido exposto repetidamente como inútil por especialistas do governo, jornais e canais de TV. O aparelho era originalmente produzido na Inglaterra, em uma fazenda leiteira desativada em Somerset, mas o diretor da companhia foi preso sob suspeita de fraude e a exportação agora está proibida. O único componente eletrônico do dispositivo é um pequeno disco que custa alguns centavos de libra e é similar àqueles alarmes pregados às roupas nas lojas para impedir as pessoas de sair com elas sem pagar.

Embora a produção de cada "sonar" custe apenas cerca de 50 dólares, o Iraque gastou 85 milhões de dólares com sua compra em 2008 e 2009. Apesar de terem sido expostos como imprestáveis, eles nunca foram retirados e continuam sendo um dos principais meios de deter os homens-bomba da Al-Qaeda. Um chefe policial iraquiano confidenciou-me que os agentes sabem que seus detectores não funcionam, mas continuam a usá-los porque receberam ordens de fazê-lo. Afirma-se em Bagdá que alguém recebeu uma grande propina para comprar os "sonares" e não quer admitir que eles são um lixo. Não surpreende que as bombas que explodem com efeito devastador no coração da capital tenham passado por dezenas de postos de checagem sem ser detectadas.

Seis por meia dúzia

A corrupção explica muita coisa no Iraque - mas não é a única razão pela qual tem sido tão difícil criar um governo que funcione. Não deveria ser muito complicado superar Saddam Hussein. Parte do problema é que a invasão dos EUA e a derrubada de Saddam tiveram consequências revolucionárias porque transferiram o poder dos baathistas árabes sunitas para os 60% de iraquianos que são xiitas e mantêm aliança com os curdos. O Iraque ganhou uma classe dominante com raízes na população rural xiita e liderada por ex-exilados que não tinham nenhuma experiência de governo. Em muitos aspectos, seu modelo de governo é recriar o sistema de Saddam, mas desta vez com os xiitas no poder. Costumava-se dizer que o Iraque estava sob o comando de árabes sunitas de Tikrit, a cidade de Saddam ao norte de Bagdá. Hoje, moradores de Bagdá reclamam que um grupo coeso similar, da cidade xiita de Nasiriyah, cerca o primeiro-ministro Nouri al-Maliki.

Em muitos aspectos, o Iraque torna-se parecido com o Líbano, com seu sistema político e sua sociedade divididos por seitas e lealdades comunitárias. O resultado da eleição parlamentar de 7 de março podia ser facilmente previsto considerando-se que a maioria dos iraquianos votaria sob a condição de sunitas, xiitas ou curdos. Cargos no topo do governo e em toda a estrutura burocrática são preenchidos informalmente de acordo com a filiação sectária. Grosso modo, isso realmente concede a todos uma fatia do bolo, mas o bolo é pequeno demais para satisfazer mais do que uma minoria dos iraquianos. O governo também acaba enfraquecido porque os ministros são representantes de algum partido, facção ou comunidade e não podem ser demitidos por desonestidade ou incompetência.

Retornando a Bagdá no mês passado, depois de permanecer ausente por algum tempo, fiquei surpreso ao ver como as coisas mudaram pouco. O aeroporto ainda era um dos piores do mundo. Quando tentei voar para Basra, a segunda maior cidade do país e centro da indústria petrolífera, a Iraqi Airways informou que havia apenas um voo durante a semana e não tinha certeza de quando ele partiria.

Refugiados

A violência pode ter diminuído, mas poucos entre os 2 milhões de refugiados iraquianos na Jordânia e na Síria acham que é seguro voltar para casa. Outros 1,5 milhão são deslocados internos, expulsos de suas casas em pogroms sectários em 2006 e 2007 e assustados demais para retornar. Destes, cerca de 500 mil tentam sobreviver em campos de refugiados que, segundo a Refugees International, carecem de "serviços básicos, incluindo água, saneamento e eletricidade, e são construídos em locais precários - sob pontes, ao longo de ferrovias e em meio a depósitos de lixo". Um dado preocupante sobre esses campos é que o número de moradores deveria diminuir à medida que a guerra sectária enfraquece, mas na verdade a população de deslocados internos está crescendo. Hoje, os refugiados chegam aos campos não por medo dos esquadrões da morte, mas por causa da pobreza, do desemprego ou da prolongada seca que expulsa os fazendeiros de suas terras.

O Iraque está cheio de pessoas que têm pouco a perder e sentem profundo ódio de um governo que, a seu ver, é dominado por uma elite cleptomaníaca que devora as receitas petrolíferas do país. Como no Líbano e no Afeganistão, onde as disparidades de riqueza também são enormes, o ódio de classes e as diferenças religiosas se somam para exacerbar o ódio sentido entre as comunidades e dentro delas. A revolta dos despossuídos explica a selvageria dos saques em Bagdá em 2003, quando as pessoas saíram das favelas de Cidade Al-Sadr para pilhar ministérios e escritórios governamentais.

Petrodólares

O Iraque difere do Líbano em um aspecto fundamental: é um Estado petrolífero com receitas de 60 bilhões de dólares no ano passado e uma das maiores reservas inexploradas do mundo. Suas exportações de petróleo podem quadruplicar ao longo da próxima década graças a contratos assinados com companhias petrolíferas internacionais em 2009. Deve haver dinheiro suficiente para elevar os padrões de vida e reconstruir a infraestrutura depois de um longo período de abandono.

À primeira vista, o petróleo poderia ser a solução para os inúmeros problemas do Iraque. Mas no passado no Iraque, assim como em outros Estados petrolíferos, o produto mostrou ser uma maldição política, além de uma bênção econômica. Países dependentes de exportações de petróleo e gás são quase invariavelmente ditaduras ou monarquias. O controle das receitas do petróleo, e não o apoio popular, surge como a fonte de poder dos governantes. Se há oposição, a riqueza petrolífera permite que os líderes reúnam e paguem forças de segurança para esmagá-la.

Nenhum país no mundo precisa do compromisso cuidadosamente calculado entre comunidades e partidos mais do que o Iraque, mas o petróleo pode tentar governos a recorrer à força. Foi o que aconteceu com Saddam Hussein, que nunca teria tido a força para invadir o Irã ou o Kuwait sem a riqueza petrolífera do Iraque. A situação pode se repetir: um Estado todo-poderoso - ainda que corrupto e incompetente - pode tentar esmagar seus oponentes em vez de conciliá-los. O petróleo, sozinho, não estabilizará o Iraque.

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