domingo, 31 de janeiro de 2010

França: Debate sobre a proibição do uso de véus fechados

Ernane Guimarães & Christophe Forcari
Folha

A psicanalista Elisabeth Roudinesco defende a proibição do véu na França, mas critica o uso político do tema por Sarkozy.

A proposta de proibição do véu fechado -por oposição ao lenço que deixa ver o rosto- vem dividindo a sociedade francesa. A psicanalista Elisabeth Roudinesco, feminista que apoiou a lei proibindo o uso de "símbolos religiosos ostensivos" nas escolas, em 2004, diz que o debate é vítima de uma "confusão" criada por jornalistas e políticos conservadores. A comissão parlamentar que propôs uma lei contra véus usou argumentos políticos: contra a dissimulação do rosto e a afirmação étnica na esfera pública. A UMP, partido do presidente Nicolas Sarkozy, fez campanha pela lei falando em "respeito aos direitos das mulheres".

O tema também tem sido associado ao debate sobre identidade nacional francesa defendido pelo ministro da Imigração, Eric Besson. Grupos muçulmanos denunciaram a proposta como discriminatória, e organizações como a Human Rights Watch dizem que tal lei pode colocar em xeque a liberdade individual. Roudinesco lança em maio no Brasil "Retorno à Questão Judaica" (ed. Zahar), que, em suas palavras, "combate os extremismos" -sejam os da política israelense, sejam aqueles que crescem na Europa. Na entrevista abaixo, as respostas da professora de história na Universidade de Paris 7 alternam reações rápidas e enérgicas e -em seguida a pausas ao telefone- explicações meditadas de seu argumento contra o véu.

Quando se fala da proibição ao véu fechado, trata-se de uma questão de direitos da mulher, de identidade francesa ou simplesmente de racismo?

Essa não é uma boa pergunta. Racismo não tem nada a ver com a questão. E o debate sobre identidade francesa, proposto pelo governo, não tem a ver com o trabalho da comissão sobre o véu integral. Tenha o cuidado de separar bem a tomada de posição do governo francês, extremamente reacionário, da comissão parlamentar que se reuniu para debater o assunto. Não se pode misturar tudo. A identidade francesa não se define. Fala-se então em "identidade nacional", mas a ideia de nação ruiu. Há uma oposição frontal de toda a esquerda francesa contra o debate sobre a identidade nacional. Assinei a petição contra essa iniciativa. Querem que os cidadãos respondam a um questionário do tipo "você canta a "Marselhesa'?", "você gosta de queijo francês?". É absolutamente ridículo, além de não funcionar. É como fazer um questionário sobre a identidade brasileira e, caso você não goste de dançar samba e nunca tenha nadado em Copacabana, seja considerado um mau brasileiro. Quase chegamos ao ponto de ter um governo tão ridículo quanto o [do premiê italiano] Berlusconi. A função presidencial deve representar valores intelectuais; é uma instituição.

A sra. ainda não falou em feminismo.

Esses símbolos religiosos são símbolos de uma servidão feminina, mas se trata de uma servidão voluntária. Na França, quem os usa costumam ser mulheres convertidas. A lei não seria suficiente para lutar contra isso.

As conclusões da comissão parlamentar são corretas?

Sou a favor de uma lei que reafirme a proibição de dissimular o rosto em serviços públicos. É uma questão de identificação. Não é preciso portar identidade, passaporte? Pois a foto precisa bater com o rosto de quem porta o documento. Não é necessário exigir isso na rua, mas sim em serviços públicos. Não se trata de proibir esse ou aquele item do vestuário, mas de evitar a dissimulação. É assim em todo o mundo -exceto, talvez, no Carnaval.

Os muçulmanos na Europa são muitas vezes pobres e pouco integrados às sociedades dos países em que vivem. Abolir o véu é uma forma de a maioria (no caso, francesa) praticar a negação do outro?

Isso é ridículo. Falo como republicana, laica e de esquerda. Lembro que a França é um Estado laico, e que a tolerância religiosa é tanto maior quanto menos confessional for o Estado. E não há racismo contra muçulmanos. Não devemos confundir muçulmanos e imigrantes.

Mas os muçulmanos na Europa, imigrantes ou não, frequentemente vivem em guetos. Não corremos o risco de fazer deles os judeus deste século?

De modo nenhum, pois não há guetos na França. E é claro que os muçulmanos não são os judeus deste século.

O Reino Unido e outros países discutem a proibição ao véu. Acredita que se trata de uma tendência no mundo ocidental?

A França é laica, e o Reino Unido é mais "comunitário". Deixou se desenvolverem o véu, o lenço, usados de modo generalizado, incluindo crianças. Com efeito, eu diria que a Inglaterra cometeu o erro de não ser suficientemente laica, mas comunitarista demais. Isso acabou trazendo problemas, criando guetos. Não tendo lutado suficientemente pela laicidade, a Inglaterra agora se encontra confrontada pela questão do islamismo radical. E é preciso compreender que só os Estados laicos podem garantir um verdadeiro funcionamento democrático. Não se pode, portanto, deixar os religiosos imporem suas leis. Se o fizerem, será uma perda para a democracia. E só a democracia pode respeitar os cultos. É claro que, com a ascensão do islamismo radical, há tentativas de desestabilizar os Estados laicos; portanto não se trata de uma tendência do Ocidente -é um problema político. A vontade de dominação religiosa, em todas as suas formas, é sempre problemática para os Estados democráticos e laicos. Vocês têm esse problema no Brasil, com a ascensão dos evangélicos. Na Europa, temos um crescimento dos fundamentalismos religiosos de todos os tipos, notadamente o católico. É também um grande problema.

Podemos esperar futuramente, como consequência, novas leis na França e em outros países?

Não, pois, no que concerne à Igreja Católica, é mais do que certo que ela tem de obedecer à Constituição do país. Não temos tantos evangélicos quanto vocês, mas temos o catolicismo. A Igreja Católica, extremamente reacionária, se opõe ao aborto, à liberdade dos homossexuais, assim como o islamismo radical também se opõe. É contra isso que os Estados laicos devem lutar. Na França, consegue-se separar a igreja do Estado, mas o perigo fundamentalista existe na Europa, em todos os cantos.

Identidade fraturada

Para Vincent Geisser, sociólogo do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (Paris) e especialista em islamismo, uma lei que proíba o uso da burca [e do niqab, vestimenta muçulmana que deixa só os olhos expostos] pode provocar grande recuo em termos de identidade.

A lei é a única resposta ao uso da burca?

Fica claro que, diferentemente do uso de um véu simples, o uso da burca se inscreve como parte de um fenômeno sectário e religioso. É aí que está o problema. Muitos muçulmanos se opõem ao uso da burca. Mas esse debate, somado ao debate sobre identidade nacional, contribui para radicalizar as posições na porção mais moderada da comunidade de muçulmanos praticantes. Uma lei assim acarreta o risco de efeitos perversos, os quais teriam como consequência uma forma de vitimização ou de martírio. Pode fazer com que pessoas que inicialmente rejeitavam o uso da burca venham a brandir os estandartes de uma identidade à parte.

Como combater o que pode parecer uma agressão aos princípios do Estado laico?

O uso da burca não representa apenas uma agressão aos princípios do Estado laico, mas à interação social como um todo, não importa o país em que seja praticado. Ele é sintoma de uma identidade religiosa que faz com que as pessoas contraiam, como se fosse doença, uma certa forma de pureza de identidade. A comissão parlamentar deveria debater a questão dos sectarismos religiosos em seu todo. A lei acarreta o risco de agravamento da fratura de identidades e comunidades, e os legisladores deveriam, na verdade, tentar reduzir esses riscos. Os proponentes dessa lei são aprendizes de feiticeiro.

Como impedir desvios sectários e religiosos?

Para começar, estamos falando de movimentos fortemente minoritários, mas que têm interesse em uma lei que permita que posem como mártires. Eles dispõem de grande capacidade de influência, com alcance bem superior ao de seus círculos. Aproveitam-se dos pequenos traumas causados àquelas pessoas que se sentem, a um só tempo, muçulmanas e francesas.

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