sábado, 19 de setembro de 2009

Elza, a garota que o Partido matou


Ana Amélia M. C. Melo
Gramsci e o Brasil

A tentativa revolucionária de 1935 tem merecido a atenção da produção historiográfica brasileira recente, como um dos eventos mais importantes para a compreensão do acerbado anticomunismo do período, seja como política do Estado varguista, seja como uma ideologia conservadora. Em alguns casos esta revisão tem demonstrado tratar-se, o anticomunismo, de uma questão muito mais complexa do que a mera conspiração imperialista ou demonstração de irracionalismo [1]. O conhecido caso da garota Elza surge neste contexto de revisão como algo emblemático.

Arrefecidas as disputas explicitamente ideológicas em torno da história do comunismo no Brasil nos anos 1930 e 1940, é possível observar e analisar criticamente o caso do assassinato de Elvira Cupello, conhecida como Elza Fernandes, em 1936, com a idade de 16 anos. Presa junto com outros companheiros após a “Intentona Comunista”, ela seria logo em seguida solta pela polícia por ser considerada inocente. Após a soltura rápida, Elza seria alvo da desconfiança dos demais companheiros. A desconfiança chega ao ponto de decidirem escondê-la em uma casa distante no subúrbio carioca do que então se chamava Ricardo de Albuquerque. Durante esse período em que se mantém sob estrita vigilância dos companheiros, é interrogada insistentemente. Apenas uma semana após sua libertação, já se falava em “medidas extremas”. Em meados de fevereiro os companheiros começam a ter dúvidas sobre a necessidade da execução. No entanto, as palavras finais de Prestes incitam e definem a sentença. Elvira é executada e enterrada no quintal da casa. O corpo é encontrado em 1940.

No seu romance, Rodrigues consegue sobrepor história e ficção de maneira inteligente. A história do levante militar liderado por Prestes e a morte de Elza são contadas a um jovem jornalista por um dos personagens do livro, um velho senhor que vivera as fortes experiências dessa geração de comunistas. Sua fórmula literária joga com o leitor ao usar recursos do estilo ficcional, mesclados com o jornalístico, para contar um fato histórico recheado de documentação. O resultado é uma emocionada e impactante história dessa desconhecida jovem, cuja morte “não oferece possibilidade de redenção”.

A cuidadosa narrativa de Sérgio Rodrigues é uma ficção bem engendrada a partir deste caso historicamente comprovado; portanto, não tem o propósito nem segue os procedimentos metodológicos necessários da pesquisa histórica, o que, entretanto, não lhe retira valor.

Precisamente, o livro do jornalista Sérgio Rodrigues desvela ainda a necessidade de um estudo historiográfico rigoroso que busque, no esquadrinhamento das fontes, uma aproximação aos fatos reais, compreendendo-os no âmbito dos temores, valores e disputas políticas da época, sem que com isso se justifique o injustificável, que foi este assassinato. Nossa historiografia carece de um estudo deste processo judicial que chocou a sociedade e que foi muito manipulado.

Em outra clave, o texto de Rodrigues busca retomar esta estarrecedora história. Entremeando o acontecimento com a descrição jornalística e uma história ficcional que conduz o relato, ele logra assombrar os leitores numa narrativa bem elaborada, mantendo o cuidado em distinguir o fato histórico de sua criação como escritor. Se esta penosa história da jovem amante de Miranda, na época secretário-geral do PCB, já era conhecida, o livro de Sérgio Rodrigues nos deixa uma desconfortável sensação diante do que se chamou, equivocadamente, de “erro político”. Qualificar isto como um ato político significaria, lembrando Hannah Arendt, desprover a política de suas bases.

Na esfera da política, o requisito é, inversamente e sobremaneira, a persuasão discursiva afirmada sobre as bases da pluralidade. É nesse mundo, no qual todos são livres e “iguais”, que se instaura a política, a ação genuinamente humana. Com a ação e com a palavra, o homem torna-se capaz de exprimir essa diferença. Parafraseando Arendt, só com atos e palavras é que podemos nos inserir no mundo, como um segundo nascimento com o qual afirmamos nosso singular aparecimento neste mesmo mundo [2]. Esta qualidade suprema da política deve ser sempre lembrada. O caso Elza contradiz isto que deveria ser nosso horizonte utópico. A lógica da desconfiança, do terror e da violência toma o lugar da palavra, tornando-se parte também da prática daqueles que deveriam representar as tendências mais politicamente progressistas da sociedade.

Notas
[1] Faço referência aqui ao livro do historiador Rodrigo Patto Sá Motta. Em guarda contra o perigo vermelho. São Paulo: Perspectiva, 2002.
[2] Arendt, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 189.

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