domingo, 31 de maio de 2009

Isaiah Berlin, um pensador no meio do caminho

Cyrus Afshar
Folha

Admirado pela direita, visto com desconfiança pela esquerda, o filósofo político Isaiah Berlin, que completaria cem anos no próximo sábado, era, sobretudo, um "humanista", na opinião de três destacados acadêmicos brasileiros ouvidos pela Folha.

Newton Bignotto, professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ricardo Musse, professor do departamento de sociologia da USP e Fábio Wanderley Reis, cientista político e professor emérito também da UFMG, debatem seu legado e as implicações políticas e sociais de suas ideias e conceitos mais importantes. Para eles, os conceitos que consolidou -pluralismo, liberdades positiva e negativa- podem ajudar a compreender os interesses em jogo por trás dos conflitos nas democracias contemporâneas e ajudam a organizar o debate de ideias. Na entrevista abaixo, discutem também o que significa ser de direita no Brasil de hoje.

FOLHA - O que significa ser direita no Brasil?

NEWTON BIGNOTTO - É uma pergunta difícil de responder hoje. Em primeiro lugar, porque essas noções, derivadas da Revolução Francesa (1789) e que tiveram tanta importância nos dois séculos que se seguiram, se dissolveram razoavelmente. E, sobretudo, no Brasil, onde poucas pessoas se declaram de direita, e nenhum partido político se declara de direita. O máximo a que podemos chegar, no cenário político, é encontrar pessoas com posições conservadoras, como em relação ao aborto ou ao modo de financiar campanhas.

RICARDO MUSSE - Isaiah Berlin não é um teórico da direita brasileira. Ele é um liberal quase clássico em sua vertente, fortemente ligado ao Iluminismo. No Brasil, seria de centro-esquerda. Ele mesmo se diz, em seus textos, mais de centro-esquerda. Mas foi muito admirado por Noel Annan, um dos gurus da ex-premiê britânica Margaret Thatcher [conservadora]. Então, talvez por isso ocorra a associação.

FÁBIO WANDERLEY REIS - Acho que ser direita em qualquer lugar do mundo pode ser posto em termos de certos valores que subsistem -apesar da tentativa de desqualificação de esquerda e direita que há por aí. Por um lado, [trata-se] da ênfase na ordem ou eventualmente na ênfase na adesão a uma dinâmica eficiente no plano econômico -do sistema capitalista em particular. Enquanto do outro lado, na esquerda, haveria a preocupação com a igualdade, promoção social dos destituídos, dos mais pobres, uma perspectiva mais igualitária, em que o valor básico da igualdade é um valor de referência. Quanto ao Brasil, não há a menor dúvida de que o grosso do eleitorado popular não entende essas categorias e as usa de maneira equivocada, que envolve confusões banais como [associar direita a] "ser um sujeito direito", coisas desse tipo.

FOLHA - Por que há, no Brasil, uma dificuldade de setores da elite política de se assumirem como "de direita", quando não ocorre a mesma coisa em outros países?

BIGNOTTO - Os partidos políticos brasileiros, ou pelo menos a maioria deles, não têm um perfil político definido -e nunca tiveram. Mais que isso: temem ter esse perfil porque querem disputar eleitores em todas as faixas. Os próprios programas dos partido são muito vagos. E isso impede que haja uma identidade tanto programática quanto uma identidade ideológica.

REIS - A [categoria] "direita" adquiriu no país uma conotação marcadamente negativa, transformou-se em uma pecha, em um xingamento -e as pessoas são levadas a se dissociarem disso.

FOLHA - Qual é a influência das ideias de Isaiah Berlin nas correntes políticas atuais?

BIGNOTTO - Ele é tipicamente um pensador liberal, porque conduziu um combate contra os totalitarismos e contra forças que ele associava à formação dos regimes totalitários. Algumas de suas contribuições foram importantes. Por exemplo, foi ele que consolidou -não inventou- a distinção entre liberdade positiva e liberdade negativa. Outra contribuição fundamental foi ter chamado a atenção para a ideia de pluralismo ético. E ter dado tanta importância à ideia de liberdade é o que marca sua herança atual.

FOLHA - O que é o conceito de pluralismo de Isaiah Berlin?

BIGNOTTO - A partir da leitura de Maquiavel e de escritores russos, como Tolstói e Dostoiévski, ele pensou: o que eles têm em comum? Para ele, têm em comum o fato de que sociedades diferentes vão ter conjuntos de valores diferentes. A pergunta que fica é: isso é relativismo? Ele responde: não, isso não é relativismo, isso é pluralismo. Não é a ideia de que nós não tenhamos ou possamos partilhar ideias no campo ético, mas sim que sociedades concretas históricas terão um conjunto de valores diferentes, que poderão comerciar, negociar entre si -nós podemos reconhecer isso em outras sociedades, mas elas serão diferentes nos seus conjuntos de valores. E ele chamava isso de pluralismo ético, o fato que civilizações diferentes necessariamente reconhecerão valores diferentes.

MUSSE - Grande parte das questões e dos conceitos que desenvolve é forjada no âmbito do Iluminismo. Há um reconhecimento da diversidade dos valores humanos, mas ele é tão amplo que chega, em certos textos, a reconhecer o nazismo como uma expressão da diversidade cultural humana.

FOLHA - A vitória do "não" no referendo do desarmamento no Brasil, em 2005, foi uma vitória da liberdade negativa?

BIGNOTTO - Em alguma medida, a gente pode formular isso sim, ao passo que a ideia de liberdade negativa se aproxima da ideia de direitos civis e, sobretudo, de direitos individuais. Acho que não é incorreto pensar -no plano dos direitos- que direitos, em geral, acolhem a ideia de liberdade negativa. São sobretudo os direitos individuais. Então, muitas pessoas se posicionaram em relação a essa questão da seguinte forma: "Não queremos ter nossos direitos restringidos por uma lei". Então dá para falar nesses termos, sim.

MUSSE - Acho difícil estender o conceito de liberdade negativa para determinados âmbitos como esse. Logicamente, poderia ser dito que sim. Mas isso estaria em desacordo com o corpo central do pensamento de Berlin. Não podemos esquecer que Berlin era um humanista. E essa ideia de universalismo moral impõe um limite, porque, por um lado, a vitória do "não" é a prevalência do indivíduo sobre o Estado. É uma forma de diminuir o controle. Mas, por outro lado, a noção moral e a própria ideia de humanidade estão em desacordo com a ideia da guerra de todos contra todos, que de certa forma o "não" significava -ou, pelo menos, que a questão da segurança é uma questão individual, e não coletiva.

REIS - Vejo aquilo de maneira muito negativa. Não acho que seja uma forma de afirmar legitimamente o que a liberdade negativa tem de melhor. Com o estímulo da presença do Estado, da atuação reguladora do Estado e até da atuação repressiva do Estado, percebe-se menos o fato de que, se cada um usa livremente sua liberdade negativa, isso resultará em pessoas pisando umas nos calos das outras. Isso resultaria em violência, em criminalidade. Haveria uma sociedade hobbesiana.

FOLHA - Pode-se dizer que isso é um indício de que a tendência encontra respaldo entre os brasileiros?

BIGNOTTO - Acho que o problema que nós devemos nos colocar é o da presença do liberalismo na sociedade brasileira. Essa separação ajudou Berlin a consolidar uma crença muito forte de um tipo de liberalismo. [O cientista político] Wanderley Guilherme dos Santos, num texto antigo, mas muito interessante, diz que o Brasil adotou ideias do liberalismo econômico cedo em sua história e que o liberalismo político sempre patinou entre nós. É fato que ideias próximas do liberalismo político têm ganhado espaço na mídia, assim como na sociedade civil e na sociedade brasileira em geral. E, entre elas, certamente no terreno dos direitos individuais.

REIS - Depende como se lê. É algo que ilustra um certo grau em que é possível manipular a chamada opinião pública ou o eleitorado com slogans adequados. Bastaram que certos temas fossem agitados, como se aquilo envolvesse uma certa castração das pessoas, para que a coisa [a posse de armas] fosse apoiada. Mas eu evitaria vincular aquilo como um exemplo de uma manifestação de um liberalismo em um sentido mais adequado, mais rico, por parte do eleitorado brasileiro em geral. Foi um momento infeliz, sob essa ótica.

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