segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Uma história da Europa


Eric Hobsbawm
Folha

É absurda a presunção de unidade quando se fala em Europa, porque é precisamente a divisão que caracteriza a história do continente. Mesmo para os europeus que levam hoje uma vida realmente transnacional, a identificação primeira ainda é nacional.

Como o Deus da Bíblia no momento da criação, o cartógrafo é obrigado a dar nomes àquilo que descreve; conseqüentemente, a toponímia, construção humana, é carregada de motivações humanas. Por que classificar como "continente" o conjunto de penínsulas, montanhas e planícies situadas na extremidade ocidental do grande continente euro-asiático? No século 18, um historiador e geógrafo russo, V.N. Tatichtchev, traçou a linha divisória entre Europa e Ásia que todos nós conhecemos: dos Urais ao mar Cáspio e ao Cáucaso. Para banir o estereótipo de uma Rússia "asiática" -logo, atrasada- era preciso destacar seu pertencimento à Europa.

Os continentes são tanto -ou mais?- construções históricas quanto entidades geográficas. A Europa cartográfica é uma construção moderna. Foi apenas no século 17 que ela saiu do limbo. A idéia atual de uma União Européia (UE) é ainda mais jovem, e os projetos práticos para sua unificação só nasceram no século 20, filhos das guerras mundiais. Países antes hostis se uniram para formar uma zona de paz, avalista dos interesses comuns.

Trata-se de uma Europa historicamente jovem. A Europa ideológica, porém, é bem mais antiga. É a Europa, terra da civilização, versus a não-Europa dos bárbaros. A Europa como metáfora de exclusão existe desde Heródoto. Sempre existiu. É uma região de dimensões variáveis, definida pela fronteira (étnica, social, cultural e geográfica) com as regiões do "Outro", freqüentemente situadas na "Ásia", às vezes "África".A etiqueta "Ásia" como sinônimo de um "outro" que reúne a ameaça e a inferioridade foi colada nas costas da Rússia desde sempre. Da política aos mitos é apenas um passo. O mito europeu por excelência é o da identidade primordial. O que temos em comum é essencial; o que nos diferencia é secundário ou insignificante. Ocorre que a presunção de unidade, em se tratando da Europa, é ainda mais absurda pelo fato de que é precisamente a divisão que caracteriza sua história. Uma história da Europa é impensável antes do fim do Império Romano Ocidental e mesmo antes da ruptura permanente entre as duas margens do Mediterrâneo, que se seguiu à conquista muçulmana do norte da África.

Os gregos da Antigüidade se situavam numa civilização tricontinental, que engloba o Oriente Médio, o Egito e um setor modesto da Europa mediterrânea oriental. Nos séculos 4º e 3º a.C., a iniciativa militar e política passou às margens do setor europeu desse espaço. Alexandre, o Grande, criou um império efêmero que se estendia do Egito ao Afeganistão. A República romana construiu um império mais durável entre a Síria e o estreito de Gibraltar.

O Império Romano nunca conseguiu estabelecer-se solidamente além do Reno e do Danúbio. Roma foi um império pan-mediterrâneo, mais que europeu, e o que conta para o destino da Europa não é o império que triunfa, mas o império que desaparece. A história da Europa pós-romana é a história de um continente fragmentado, presa constante de invasores. Hunos, abares, magiares, tártaros, mongóis e pequenas tribos turcas chegam do leste, os vikings, do norte, os conquistadores muçulmanos, do sul. Essa época só termina em 1683, quando os turcos são derrotados às portas de Viena. Afirmou-se que a Europa descobriu sua identidade ao longo dessa luta milenar. É um anacronismo. Nenhuma resistência coletiva ou coordenada, mesmo em nome do cristianismo, cimentou o continente e a unidade cristã desaparecidos no meio da época das invasões. Desde então, houve uma Europa católica e outra ortodoxa. Entre a queda de Bizâncio em 1453 e o cerco de Viena de 1683, os últimos conquistadores vindos do Oriente, os turcos otomanos, ocupam todo o sudeste europeu. Mas outra parte da Europa já iniciou uma época de conquistadores.

Eles descobrem não apenas as Américas, mas a Europa, pois é em contraposição aos povos indígenas do Novo Mundo que espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses, franceses e italianos, que se precipitam sobre as Américas, vão reconhecer seu caráter europeu. Eles têm a pele branca, impossível de confundir com a dos "índios". Nasce uma diferenciação racial que, nos séculos 19 e 20, se converterá na certeza de que os brancos detêm o monopólio da civilização. Mesmo assim, a palavra "Europa" ainda não faz parte do discurso político -para isso é preciso esperar o século 17.

O nome remete ao jogo militar e político dominado pela França, o Reino Unido, o império dos Habsburgos e a Rússia, a que vem se juntar mais tarde uma quinta "grande potência", a Prússia -transformada em Alemanha unida. Mas foram também as transformações da paisagem política que, no século 17, tornaram possível o nascimento dessa Europa consciente dela mesma. A Paz de Westfália, que pôs fim à Guerra dos 30 Anos, trouxe duas inovações políticas. Daquele momento em diante, não houve mais Estados territoriais que não fossem soberanos, e esses Estados passaram a não reconhecer nenhuma obrigação superior a seus interesses, definidos segundo os critérios da "razão de Estado" -uma racionalidade política e laica. É o universo político que habitamos hoje.

Duas outras europas se afirmam. A primeira é a da república das letras que toma corpo a partir do século 17. Para os que compõem essa república -ou seja, as algumas centenas ou, no século 18, alguns milhares de pessoas que se comunicam em latim, depois em francês, a Europa existe. Quanto à última Europa, trata-se da comunidade cosmopolita dotada dos valores universais da cultura do século 18, que se amplia após a Revolução Francesa. No decorrer do século 19, a Europa se torna viveiro de um conjunto de instituições educativas e culturais e de todas as ideologias do mundo contemporâneo. Esse sobrevôo da história da identidade européia nos permite identificar o anacronismo cometido quando se procura um conjunto coerente de supostos "valores europeus". É ilegítimo supor que os "valores" nos quais se inspiram hoje a democracia liberal e a União Européia tenham sido uma corrente subjacente à história de nosso continente. Os valores que fundaram os Estados modernos antes da era das revoluções foram os das monarquias absolutas e mono-ideológicas. Os valores que dominaram a história da Europa no século 20 -nacionalismos, fascismos, marxismos-leninismos- são de origem tão puramente européia quanto o liberalismo e o "laissez-faire".

Inversamente, outras civilizações praticaram certos valores ditos "europeus" antes da Europa: o império chinês e o império otomano praticaram a tolerância religiosa -para a sorte dos judeus expulsos pela Espanha. Foi apenas no final do século 20 que as instituições e os valores em questão se difundiram por toda a Europa, pelo menos teoricamente. Os "valores europeus" são uma palavra de ordem da segunda metade do século 20. De 1492 a 1914, a Europa esteve no coração da história do mundo. Primeiro por sua conquista do Hemisfério Ocidental do globo e, de maneira mais ampla, a partir de 1750, por sua superioridade militar, marítima, econômica e tecnológica. O "momento" europeu da história mundial se encerra com a Segunda Guerra, embora ainda nos beneficiemos do rico legado econômico e, em menor medida, intelectual e cultural dessa supremacia perdida.

A hegemonia dessa região levanta problemas que continuam a dividir os historiadores. Lembremos apenas que, depois da queda de Roma, a Europa não conheceu nenhum outro quadro de autoridade comum nem qualquer outro centro de gravidade permanente.

Mas essa heterogeneidade do continente oculta uma divisão de funções entre dois centros dinâmicos sucessivos e suas periferias. O primeiro foi o Mediterrâneo ocidental, lugar de contato com as civilizações do Oriente Médio e distante, lugar da civilização urbana e da sobrevivência do legado romano.Mas, entre 1000 e 1300, uma zona cada vez mais orientada ao Atlântico foi tomando a dianteira como eixo central da evolução urbana, comercial e cultural do continente. O grande desenvolvimento da Europa teria sido difícil sem a contribuição das "periferias" exportadoras de matérias-primas. O desnível entre essas zonas, cujas estruturas sociais divergem em razão da divisão de trabalho e de suas experiências históricas, foi profundo. Ainda temos consciência da linha de fratura que existe, embora tenha diminuído, entre as duas europas, como entre Itália do norte e Itália do sul ou entre Catalunha e Castela. No século 19, uma elite restrita conseguiu superar essas divisões, enquanto a massa dos europeus continuava a viver no universo oral dos dialetos locais.

O progresso das línguas do Estado perpetuou essa pluralidade agrária, que perdurou com a chegada dos Estados nacionais: a partir daí, o cidadão se identifica com uma "pátria" contra outras. A Europa das nações tornou-se o continente das guerras. E, se a Europa, hoje, não saiu totalmente dessa configuração, esses anos que se passaram não deixaram de ser uma época de convergências impressionantes, com a harmonização institucional e jurídica ou a redução das desigualdades internacionais -econômicas e sociais-, graças aos notáveis "saltos à frente" dados por países como Espanha, Irlanda ou Finlândia. As revoluções em transportes e comunicações facilitaram a homogeneização cultural, que avança com a explosão da educação secundária e da universitária e com a difusão, especialmente entre os jovens, de um modo de vida e de consumo de origem transatlântica.

No mundo da cultura, entre as classes instruídas e abastadas, é a herança européia que se globalizou. Desde o desaparecimento dos regimes autoritários e o fim dos regimes comunistas, as divisões político-ideológicas da Europa desapareceram, embora as sobrevivências da Guerra Fria ainda lancem abismos entre a Rússia e seus vizinhos. Mas um paradoxo se faz notar: apesar desse processo de homogeneização, os europeus não se identificam com seu continente. Mesmo para aqueles que levam uma vida realmente transnacional, a identificação primeira ainda é nacional. A Europa está mais presente na vida prática dos europeus que em sua vida afetiva. Apesar de tudo, porém, ela conseguiu encontrar um lugar permanente no mundo, como coletividade -permanente, mas incompleta, enquanto a Rússia não encontrar seu lugar em seu seio.

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