quinta-feira, 2 de outubro de 2008

José Carlos Mariátegui: tão longe, tão perto


Luiz Bernardo Pericás
Gramsci e o Brasil

José Carlos Mariátegui, considerado o “pai” do marxismo latino-americano, ainda é, em grande medida, um desconhecido em nosso país. Restrita, quando muito, ao meio acadêmico, sua obra ainda não conseguiu penetrar de forma mais incisiva no mercado editorial brasileiro, ainda que alguns de seus escritos tenham sido lançados em anos recentes. Seu livro, os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, publicado há exatamente oitenta anos, é apontado como o mais influente, original e inovador estudo do processo histórico de uma nação realizado por um intelectual na América do Sul.

Há quem afirme que a publicação dos Sete ensaios marca, de fato, a data de nascimento do marxismo na região. Afinal, Mariátegui, ao contrário de muitos, não “copia” ou “transfere” mecanicamente sistemas teóricos europeus para sua realidade, mas realiza, na prática, o primeiro esforço bem-sucedido para “nacionalizar” o arcabouço teórico de Marx em nosso continente. Mesmo assim, pouco se sabe de sua vida e de seu pensamento.

As primeiras referências a ele conhecidas por aqui datam de 1928, quando o jornalista e teórico peruano troca correspondência com o intelectual paulista Álvaro Soares Brandão, que tinha interesse em publicar um de seus textos na revista Amauta, editada por ele. Depois disso, o nome de Mariátegui irá aparecer rapidamente em 1946, num artigo de Waldo Frank, traduzido por Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça. Luis Carlos Prestes enviará carta ao Comitê Central do Partido Comunista peruano em 1960, em homenagem a JCM, que será publicada no órgão Unidad, de Lima, enquanto um texto de Astrojildo Pereira, “José Carlos Mariátegui y su obra”, aparecerá na mesma edição.

Nelson Werneck Sodré era admirador dos Sete ensaios (a edição utilizada por ele era a chilena, publicada em 1955) e usou a obra como referência para seu curso no Iseb sobre a formação histórica do Brasil (que começou a ministrar em 1956), curso este que resultaria, mais tarde, em seu livro Formação histórica do Brasil, de 1962. Neste livro, ele citará os Sete ensaios extensamente em notas. Para alguns estudiosos do pensamento de Sodré, seu pioneirismo seria, inclusive, ainda maior, já que ele teria fundamentado suas teses centrais em JCM, teses estas incorporadas mais tarde no trabalho supracitado. Por outro lado, o mais importante historiador brasileiro, Caio Prado Jr., aparentemente não sofreu influência direta do teórico peruano. Uma avaliação empírica mostra que não consta nenhuma ficha bibliográfica, das novecentas preparadas por ele (atualmente guardadas no Instituto de Estudos Brasileiros da USP), que discuta qualquer livro de JCM.

Ainda que Sodré tenha trazido algumas das idéias do teórico peruano para o debate intelectual dentro das esquerdas brasileiras já no final da década da 1950 e início dos anos 1960, o primeiro grande impulsionador da obra mariateguiana no Brasil foi, de facto, o sociólogo Florestan Fernandes, que somente em 1975 consegue editar, pela primeira vez em nosso território, os Sete ensaios, pela editora Alfa Omega. Um atraso de quarenta e sete anos. Mais tarde, ele coordenaria uma coleção de obras compiladas de “cientistas sociais” na qual estaria incluída uma seleção de textos do jornalista e também publicaria, em 1994, o importante artigo “O significado atual de José Carlos Mariátegui”, numa revista acadêmica (Universidade e Sociedade).

Dos anos 1980 para cá foram publicadas no Brasil algumas coletâneas de JCM, entre as quais uma sobre personalidades políticas de sua época (Do sonho às coisas, Boitempo, 2005), uma reunião de textos políticos (Por um socialismo indo-americano, UFRJ, 2005), duas pequenas biografias intelectuais (José Carlos Mariátegui, Brasiliense, 1983, e Mariátegui, vida e obra, Expressão Popular, 2006), um livro sobre temas de educação (Mariátegui sobre educação, Xamã, 2007) e outro sobre os primórdios do fascismo (As origens do fascismo, Alameda, 2008). [Ver também: J. C. Mariátegui e o marxismo na América Latina, Unesp e Cultura Acadêmica, 2002].

Diversas teses acadêmicas sobre JCM têm sido preparadas e defendidas em distintas universidades brasileiras, e o mais importante movimento social do país, o MST, ministra cursos sobre o teórico político peruano. Mas ainda há um longo caminho a ser trilhado para que o pensamento deste autor (comparado em muitos aspectos a Antonio Gramsci) seja mais bem difundido aqui.

A lenta penetração de JCM no Brasil talvez se deva a três motivos principais. Primeiro, o Peru era um país marginal para o Brasil em termos culturais. Os Estados Unidos, a Europa, e até mesmo a Argentina e o México, apesar da distância física, tinham não só maior contato com nosso país, como possuíam uma estrutura editorial e divulgação literária muito mais fortes do que a nação andina, que também apresentava uma conformação étnica e histórica em vários aspectos bastante diferentes da nossa. Além disso, o Partido Comunista do Brasil, vinculado ao Komintern (a organização que teria condições de divulgar a obra de JCM por aqui), também não teria, necessariamente, interesse em propagar as idéias mariateguianas, que, de acordo com vários membros da IC, eram “desvios” ideológicos, populistas e contrários ao que Moscou defendia. Finalmente, o próprio Mariátegui, que costumava escrever sobre os acontecimentos mundiais e fatos relacionados a vários países, praticamente não menciona o Brasil em suas dezenas de artigos. Ele chegou a escrever sobre nações tão distantes como a Inglaterra, a Irlanda, a Turquia, a França, a Índia e a China, mas, mesmo estando supostamente tão próximo do Brasil, nunca elaborou um texto sequer sobre nosso país. Isso quando ocorriam, no cenário brasileiro, eventos importantes, como o movimento modernista, o tenentismo, a Coluna Prestes e o cangaço. O autor de La escena contemporánea irá mencionar o Brasil muito poucas vezes, apenas em pinceladas, para discutir, rapidamente (mas não exclusivamente), a questão dos negros no continente.

Mariátegui nasceu em uma família humilde e nunca chegou a conhecer o pai. Sempre teve saúde frágil e problemas físicos. Quando menino, recebe um forte golpe em uma das pernas, numa brincadeira escolar. Passará por cirurgias que o deixarão manco pelo resto da vida (nos seus últimos anos ele terá uma de suas pernas amputada). Ele se tornará um garoto recluso e amante da leitura. Por causa de todas as complicações de seu estado de saúde e da situação econômica precária de sua mãe, irá abandonar definitivamente, ainda muito cedo, a escola. Não chegou a concluir o curso primário. Quando garoto e adolescente trabalhou como entregador, linotipista e corretor de provas de um jornal limenho, para em seguida ingressar na carreira jornalística.

Este periodista autodidata aos poucos se aproximará do movimento operário, apoiará greves e será visto como uma pedra no sapato do então governo do presidente Augusto Leguía, que o enviará, num exílio dissimulado, para viver por alguns na Europa. A maior parte do tempo ficará na Itália, onde lerá os mais influentes jornais da época, conhecerá personalidades políticas e literárias do Velho Continente, observará em primeira mão o início do fascismo e presenciará a formação do Partido Comunista daquele país. Ao retornar ao Peru já estava “formado” politicamente e era assumidamente marxista. Seu primeiro livro, La escena contemporánea, sairá em 1925, e pouco depois, em 1928, publicará os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana.

Em sua obra-prima, seu “clássico”, Mariátegui (fundador e principal dirigente do Partido Socialista e da Central Geral dos Trabalhadores do Peru) conseguirá mostrar com profundidade e maestria o painel geral do desenvolvimento histórico de seu país, desde o período pré-colombiano, passando pela colonização espanhola, até chegar às primeiras décadas do século XX, sendo capaz de articular temas fundamentais, como a evolução econômica peruana, a questão do regionalismo e do centralismo, a literatura, a questão agrária e o problema indígena. Criticado por Haya de La Torre e a Apra (Alianza Popular Revolucionaria Americana) e pelo Komintern, JCM será acusado (dependendo de seus detratores) de “europeizante”, “aprista”, “populista”, “intelectual pequeno-burguês”, “bolchevique d’annunziano” e “leninista”. Afinal de contas, suas idéias heterodoxas eram uma “ameaça” política às outras agrupações que lutavam pela hegemonia do movimento operário no país.

Logo depois do desaparecimento físico de Mariátegui, em 1930, ocorrerá uma tentativa de eliminar os supostos “desvios” mariateguistas de seu partido, que começou, a partir de então, a seguir fielmente as diretrizes de Moscou, não aceitando que se construíssem esquemas teóricos que saíssem das fórmulas propostas pelos dirigentes da Internacional. Por algum tempo, portanto, JCM se tornou um “herege” e seu legado acabou sendo desprezado por muitos “comunistas” ortodoxos.

Ao longo dos anos, contudo, isto iria mudar. A primeira edição dos Sete ensaios , com cinco mil exemplares, vendeu lentamente. A segunda só sairia em 1944, preparada por seu primogênito, Sandro, com uma tiragem maior, dez mil livros. A terceira virá à luz somente oito anos mais tarde.

De lá para cá, já foram editadas mais de 70 edições da obra em todo o mundo (incluindo as peruanas e as estrangeiras). Fato este, é claro, ajudado pela publicação das edições de bolso, vendidas a preços populares em todo o Peru. A primeira destas, lançada em 1956, teve uma tiragem de cinqüenta mil livros. Os Sete ensaios foram publicados (a partir dos anos 1950 em diante) em dezessete países. Com dois milhões de exemplares vendidos, é o livro peruano de não-ficção de maior sucesso da história e com o maior número de edições em todo o mundo.

No Peru, as comemorações dos oitenta anos dos Sete ensaios estão sendo organizadas por um comitê encabeçado pelo filho mais velho de JCM, Sandro Mariátegui, e um conselho consultivo que inclui intelectuais locais e estrangeiros importantes, como Aníbal Quijano, Antonio Melis, Michael Löwy e Héctor Alimonda, entre vários outros. Simpósios e publicações estão na pauta da equipe, assim como novas edições e a criação de uma cátedra com o nome de Mariátegui na Universidade de San Marcos. Só falta agora que o público brasileiro conheça mais profundamente este grande intelectual. Novas publicações por aqui certamente ajudarão a divulgar para nossos leitores sua vida e seu pensamento.

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