domingo, 28 de setembro de 2008

Ideologia do livre mercado está longe do seu fim


Naomi Klein
The Guardian

Pacote de US$ 700 bilhões de ajuda ao mercado financeiro dos EUA é álibi para cidadãos reivindicarem mais direitos sociais, mas neoliberalismo deve sair fortalecido.

Seja qual for o significado dos acontecimentos das últimas semanas, ninguém deve acreditar nas declarações exageradas de que a crise do mercado assinala a morte da ideologia do "livre mercado". A ideologia do livre mercado sempre esteve a serviço dos interesses do capital, e sua presença avança e recua, dependendo da utilidade que tem para esses interesses. Em épocas de crescimento, pregar o "laissez-faire" é rentável, porque um governo ausente permite o crescimento de bolhas especulativas. Quando essas bolhas estouram, a ideologia se torna um empecilho e entra em estado dormente, enquanto o grande governo parte em missão de salvamento. Mas podemos ter a certeza de que a ideologia retornará com força total assim que os pacotes de socorro tiverem sido entregues.

As dívidas maciças que o público está acumulando para socorrer os especuladores irão, então, tornar-se parte de uma crise orçamentária global que será usada para justificar cortes profundos nos programas sociais, além de uma investida renovada para privatizar o que restou do setor público. Também nos dirão que, infelizmente, nossas esperanças de um futuro verde são demasiado onerosas.

O que não sabemos é como o público vai reagir. Vale lembrar que todos os que têm menos de 40 anos nos EUA cresceram ouvindo que o governo não pode intervir para melhorar nossas vidas, que o governo é o problema, não a solução, que o "laissez-faire" é a única opção. Agora, repentinamente, nos vemos diante de um governo extremamente ativista, intensamente intervencionista, aparentemente disposto a fazer o que for preciso para salvar os investidores deles mesmos. Esse espetáculo necessariamente levanta uma pergunta: se o Estado pode intervir para salvar grandes corporações que assumiram riscos insensatos nos mercados imobiliários habitacionais, por que não pode intervir para salvar milhões de americanos do risco iminente de perderem suas casas devido à execução de suas hipotecas? Se US$ 85 bilhões podem ser disponibilizados instantaneamente para comprar a seguradora gigante AIG, por que um sistema de saúde pago por um fundo único -que protegeria os americanos das práticas predatórias das empresas de seguro-saúde- parece ser um sonho tão inalcançável? E, se cada vez mais corporações precisam do dinheiro dos contribuintes para se manterem em pé, por que os contribuintes não podem fazer exigências em troca -por exemplo, a imposição de tetos aos salários dos executivos ou a adoção de garantias contra mais perdas de empregos?

Agora que está claro que os governos podem, sim, intervir em tempos de crise, ficará muito mais difícil para eles alegar impossibilidade de agir no futuro. Outra mudança potencial tem a ver com as esperanças do mercado quanto a privatizações futuras. Os bancos globais de investimentos vêm fazendo lobby com políticos há anos em favor de dois mercados novos: um que viria da privatização das pensões públicas e outro que viria de uma nova onda de privatizações totais ou parciais de rodovias, pontes e sistemas de água.

Fica mais difícil argumentar em favor desses dois sonhos: os americanos não estão com vontade de confiar uma parte maior de seus ativos individuais e coletivos aos apostadores insensatos de Wall Street, especialmente porque parece mais que provável que os contribuintes terão que recomprar seus próprios ativos quando a próxima bolha estourar.

Com o descarrilamento das conversações na Organização Mundial do Comércio, a crise atual pode também catalisar uma abordagem radicalmente alternativa à regulamentação dos mercados e sistemas financeiros mundiais. Já está ocorrendo no mundo em desenvolvimento um movimento em favor da chamada "soberania alimentar", como alternativa a deixar que caprichos dos negociantes de commodities ditem o acesso aos alimentos em todo o mundo. É possível que tenha chegado a hora, finalmente, de idéias como a taxação das transações financeiras, que desaceleraria o investimento especulativo, além de outros controles dos capitais globais.

E, agora que "nacionalização" deixou de ser palavrão, as empresas de petróleo e gás farão bem em se precaver: alguém precisa pagar pela mudança para um futuro mais verde, e faz muito sentido que a parte maior dos recursos venha do setor altamente rentável que é o maior responsável por nossa crise climática. Isso com certeza faz mais sentido do que criar outra bolha perigosa no comércio de carbono.

Mas a crise à qual estamos assistindo pede mudanças ainda mais profundas. A razão pela qual se permitiu que proliferasse o crédito de risco não foi apenas que os reguladores não compreenderam o risco. É porque temos um sistema econômico que mede nossa saúde coletiva exclusivamente com base no crescimento do PIB. Enquanto os créditos de risco estavam alimentando o crescimento econômico, nossos governos os apoiaram ativamente. Assim, o que está realmente sendo posto em xeque pela crise é o compromisso sem questionamentos com o crescimento a qualquer custo.

Esta crise deve nos conduzir a uma maneira radicalmente diferente de nossas sociedades medirem a saúde e o progresso. Mas nada disso vai acontecer sem a imposição de pressões públicas muito fortes sobre os políticos neste período-chave. Não estamos falando em fazer lobby de modo educado, mas na volta das pessoas às ruas e ao tipo de ação direta que trouxe o New Deal nos anos 1930. Sem isso, haverá mudanças superficiais e o retorno ao "business as usual" o mais rapidamente possível.

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