quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Gramsci, o pensador da democracia


Giuseppe Vacca
Política Democrática

A partir da segunda metade dos anos setenta do século passado, os estudiosos que participam da renovação da interpretação do pensamento de Gramsci compartilham a convicção de que o núcleo dinâmico dos Cadernos esteja nos parágrafos dedicados ao Americanismo, de que a principal categoria analítica introduzida por Gramsci na pesquisa histórica seja o conceito de “revolução passiva”, e de que desta tenha tido origem o desenvolvimento de um pensamento original, baseado na teoria da hegemonia.

O pensamento de Gramsci no cárcere chega ao amadurecimento entre 1932 e 1934 e contém uma visão do século XX que antecipa um nexo de problemas hoje tornados ainda mais evidentes. São os problemas da globalização da economia mundial e do seu impacto sobre os sistemas nacionais. A reflexão de Gramsci culmina numa nova idéia da política.

As pesquisas sobre a história do marxismo contida no Caderno 11, sobre a filosofia de Benedetto Croce contida no Caderno 10 e sobre os intelectuais e a política (Cadernos 12 e 13) constituem os capítulos principais da filosofia da práxis. A teoria da hegemonia - definida por Gramsci como “desenvolvimento teórico-prático da filosofia da práxis” - compõe-se de uma gnosiologia e de uma analítica, cujos conceitos recebem a elaboração mais completa nos Cadernos 14, 15 e 16.

A partir da gnosiologia e da analítica da hegemonia germina uma concepção original da constituição dos sujeitos políticos, cujo principal laboratório é a história da Itália contemporânea (o Caderno 19, mas não só).

O programa de pesquisa dos Cadernos originou-se da reflexão sobre as conseqüências da derrota da revolução socialista na Europa no início dos anos vinte e sobre a mudança da natureza e da função internacional da URSS como desdobramento da “revolução pelo alto” e pelo desencadeamento da “guerra camponesa”. Segundo Gramsci, o fim da aliança entre operários e camponeses, provocado por Stalin, tinha conseqüências de alcance mundial. Com tal ruptura desaparecia a possibilidade de dar continuidade e orientação socialista ao revolucionamento das massas, prosseguindo o processo iniciado pela Revolução de Outubro.

O socialismo se territorializava e mudavam as bases sociais do Estado soviético. A URSS staliniana mostra-se, para Gramsci, como uma “forma extrema de governo dos funcionários”, uma forma primitiva, econômico-corporativa, de Estado operário, pobre de capacidade hegemônica e de elementos de plano, globalmente sem capacidade de expansão. Segundo Gramsci, a origem disso estava na interrupção da construção de uma “economia média”, baseada numa troca equilibrada entre cidade e campo.

Seu desaparecimento bloqueava a propagação internacional de processos análogos, baseados nacionalmente na aliança entre operários e camponeses. Ruía assim a idéia da revolução mundial, que Gramsci, fiel à lição original dos bolcheviques, entendera como difusão do industrialismo com base na cooperação entre cidade e campo de modo a romper o antagonismo que caracteriza suas relações na modernidade capitalista.

A investigação das causas da derrota faz Gramsci aprofundar a busca das dinâmicas do desenvolvimento capitalista e concentrar a atenção sobre a forma mais avançada de industrialismo, a de tipo americano, caracterizada pelo taylorismo e pelo fordismo. Em oposição à teoria oficial do movimento comunista, chega a uma diferente periodização e interpretação da era do imperialismo. Segundo Gramsci, a partir do final do século XIX, o desenvolvimento industrial, que unificara ainda mais o mercado mundial, havia deslocado o centro da “economia mundo” da Europa para os Estados Unidos. Aqui se afirmaram as formas mais avançadas de introdução da racionalidade científica nos processos de trabalho e na organização das empresas e dos mercados. Este tipo de industrialismo constituía a forma mais racional de desenvolvimento das forças produtivas, continha a tendência à formação de uma “economia programática” e, como tal, merecia ser difundido. Segundo Gramsci, com sua propagação se poderiam criar as condições para separar industrialismo e capitalismo, fazendo com que as classes trabalhadoras assumissem a direção dos processos de modernização.

Na visão de Gramsci, pois, a contradição principal da era contemporânea está no contraste entre o cosmopolitismo da vida econômica e o nacionalismo da vida política, baseada ainda nas prerrogativas do Estado-nação. A Primeira Guerra Mundial se originara da incapacidade por parte das classes dirigentes de resolver aquele contraste, adequando os espaços da política aos novos espaços da economia. As tentativas de solução nascidas da guerra - a revolução mundial projetada pelos bolcheviques e a criação da Sociedade das Nações projetada por Wilson - faliram rapidamente. A paz de Versalhes restabelecera as prerrogativas dos Estados nacionais e inaugurara uma época de nacionalismos exacerbados e de conflitos endêmicos. Segundo Gramsci, o contraste entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política, que se reproduz depois da guerra, estava na origem da grande crise de 1929-1931. Sua superação só poderia se verificar favorecendo a difusão do industrialismo de tipo americano, que, graças à criação da economia dos consumos, indicava o caminho para conjugar desenvolvimento e democracia.
Não há quem não veja quanta distância então separa Gramsci das concepções do movimento comunista dos anos trinta. Sua visão do desenvolvimento econômico recusava as teorias do imperialismo, da “crise geral do capitalismo” e da inevitabilidade da guerra, que constituíam o fundamento analítico do bolchevismo e a justificação histórica da Internacional Comunista. Gramsci considerava que a expansividade do movimento comunista se esgotara rapidamente e, portanto, a direção do processo histórico-mundial voltara às mãos das velhas classes dominantes.

Mas a Grande Guerra havia inaugurado uma época nova: as imensas massas camponesas fizeram sua entrada na história; a guerra as inserira nos circuitos da modernidade, dando início a um processo de desenvolvimento irreversível da subjetividade dos povos. Com o esgotamento da onda revolucionária originada da Grande Guerra e da Revolução Russa, a difusão do industrialismo e da modernidade voltaram a ficar sob a direção das velhas classes proprietárias. Deste modo, originara-se uma forma de “revolução passiva”, que dominava a cena mundial. Nela se inseria também a URSS, de modo subalterno. Mas, em todo caso, para cumprir uma tarefa histórica improrrogável, as classes dominantes deveriam haver-se com as classes subalternas. Qual era o ponto de interseção de um outro programa, que se propusesse o objetivo de fazer com que as classes populares assumissem a direção do processo?

Segundo Gramsci, o principal evento político originado da mundialização da economia era a crise do Estado-nação. O cosmopolitismo da economia modifica as características das nações. No século XX — diz Gramsci —, a história é história mundial e só convencionalmente se pode escrever a história de um só país, a não ser que se captem suas relações com a história internacional. A despeito da restauração da velha Europa dos Estados nacionais, na seqüência da paz de Versalhes, a nação não mais pode ser restrita ao horizonte da vida estatal. Uma sociedade civil internacional está em formação. As nacionalidades são continuamente remodeladas pela variação das condições internas e internacionais do desenvolvimento. A difusão mundial do industrialismo tem seus epicentros nos mercados nacionais; a regulação do crescimento econômico torna-se a função fundamental dos Estados; a identidade nacional é redefinida pelos desdobramentos da socialização, isto é, pelas combinações de nação e desenvolvimento. A idéia de nação, pois, dinamiza-se e torna-se plural. Ela varia com base nos projetos de cidadania dos diversos grupos sociais e das classes contrapostas. Em outras palavras, muda com base nas alternativas que se oferecem à internacionalização da vida estatal, nas diversas combinações dos elementos nacionais e internacionais do desenvolvimento que podem se afirmar. Isto impõe uma nova concepção da política.

Cosmopolitismo da economia significa unificação econômica do mundo, ainda que antagônica. Tal unificação gera laços cada vez mais numerosos de interdependência econômica e política. Pela primeira vez na história, pode-se conceber uma idéia da política que preveja a subordinação permanente da força ao consenso. É o conceito da política como hegemonia, que se contrapõe à concepção tradicional da política como potência. A crise do princípio de soberania provoca uma distinção progressiva da política em relação ao Estado, um distanciamento em relação a ele. Para Gramsci, este processo deve ser levado até as últimas conseqüências, entrelaçando o desenvolvimento da democracia dentro dos Estados com a criação da democracia internacional. Para ele, o objetivo se mostra realista, uma vez que a construção da supranacionalidade está na ordem do dia. Assim, ele vê o agrupamento das economias e dos Estados europeus como uma possível etapa da construção de uma nova ordem mundial, baseada na cooperação entre os povos na interdependência e na reciprocidade.

Gramsci percebe lucidamente que os centros da difusão mundial do industrialismo de tipo americano são os Estados nacionais. Eles constituem o teatro da luta política e de classe. A concepção da política como hegemonia compreende o desenvolvimento nacional de modo aberto a diferentes alternativas. Com base no industrialismo de tipo americano é possível que se forme “uma nova vontade coletiva a partir de baixo”. Esta decorre das condições em que não só a classe operária, mas toda a sociedade se encontram em face da economia. A idéia de nação que as classes populares devem promover para afirmar sua hegemonia é a que se propõe contribuir, como nação de produtores, para a “formação de uma economia segundo um plano mundial”.

Portanto, traçando um programa para as classes trabalhadoras italianas, Gramsci lhes indica o objetivo de acolher a herança da tradição cosmopolita do nosso povo. É o tema do Caderno 19 (Risorgimento), que abre o caminho para a conciliação entre classe e nação e anuncia uma remodulação democrática da nação. Segundo Gramsci, esta é a única idéia que pode guiar os processos de internacionalização postos na ordem do dia pelos desenvolvimentos da economia mundial, de modo a sanar as taras de uma história nacional caracterizada por bases demasiadamente restritas do desenvolvimento econômico e da hegemonia das classes proprietárias.

A concepção da política como hegemonia relaciona-se assim com o pensamento de Maquiavel, que, para Gramsci, é o primeiro pensador da democracia porque percebe o caráter estruturalmente plural das sociedades modernas: o caráter organizado da cidade e do campo, que o surgimento do modo de produção capitalista põe em relação dinâmica entre si, ainda que antagônica, tornando ambos a base do desenvolvimento econômico e do Estado.

O Estado moderno, ao se fundar na unificação do povo-nação, é a única forma política que permite uma troca equilibrada entre cidade e campo, e, mais em geral, entre todos os interesses organizados que formam o tecido das sociedades modernas. Parece evidente que, ligando-se à concepção da política como hegemonia, a teoria da democracia se ilumina com uma nova luz e assume um caráter realista e concretamente universal.

Reelaborar o marxismo como filosofia da práxis torna-se assim o tema principal do programa de investigação dos Cadernos, com o objetivo de indicar às classes subalternas o caminho para refundar a nação e instituir novas relações entre dirigentes e dirigidos, intelectuais e povo. Este é o sentido que Gramsci confere à filosofia da práxis quando, no ponto culminante da sua investigação, define-a como uma “heresia nascida no terreno da religião da liberdade”.

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