terça-feira, 8 de julho de 2008

Giovanni Arrighi e sua releitura de Adam Smith





Lançado quase simultaneamente no Brasil e em dezenas de países, Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI, do sociólogo italiano Giovanni Arrighi, é uma oportunidade para refletir sobre o chamado “fenômeno chinês”.

Professor de Sociologia da Universidade Johns Hopkins (EUA), Arrighi investiga as causas e as conseqüências do acelerado crescimento da China nos últimos anos. Ele prevê ameaças de enfrentamentos futuros, a decadência da hegemonia dos Estados Unidos e a criação de uma nova ordem internacional.

Para Arrighi, os EUA ainda são dominantes econômica, militar e politicamente. “Mas é uma dominação sem hegemonia, no sentido de que hegemonia não é apenas dominação pura, mas também a capacidade de fazer os outros acreditarem que você age no interesse geral.” Em seu livro, ele também aborda a preocupação dos Estados Unidos e suas tentativas de conter a expansão chinesa, originada do crescimento econômico ocorrido nos anos 1990.

A obra pretende interpretar a transferência do epicentro da economia política mundial da América do Norte para a Ásia, à luz da teoria de desenvolvimento econômico de Adam Smith, e apresentar uma releitura do clássico A riqueza das nações a partir dessa transferência. No fim do século XVII, Adam Smith, o pai do liberalismo econômico, previu uma equalização de poder entre os impérios do Ocidente e o Oriente colonizado.

A seguir, confira uma entrevista concedida recentemente pelo pensador italiano a IUH On-Line.

P: Qual é a sua interpretação, a partir da teoria de Adam Smith, sobre a transferência do epicentro da economia global da América do Norte para a Ásia Oriental? Como os ensinamentos de Smith nos ajudam a compreender mais essa crise global?

Giovanni Arrighi: A teoria de Adam Smith sobre a riqueza das nações nos oferece muitas percepções sobre as causas prováveis do atual deslocamento do epicentro da economia global da América do Norte para a Ásia Oriental e sobre a crise subjacente de acumulação de capital em escala mundial. Mencionarei três percepções especialmente importantes. Embora Smith não fale de crises capitalistas, a idéia de que, ao longo do tempo, a acumulação de capital intensifica a concorrência intercapitalista e, por conseguinte, reduz a taxa de lucro, é uma idéia dele, e não de Marx. Neste sentido, a explicação do longo declínio dos últimos 30 anos dada por Robert Brenner e por mim é eminentemente smithiana. Além disso, a análise feita por Smith acerca dos limites de empresas de grande escala em comparação com divisões de trabalho entre unidades de produção menores é útil para explicar o recente ressurgimento da terceirização, bem como o deslocamento do epicentro da acumulação de capital para a Ásia Oriental, uma região com uma oferta abundante não só de mão-de-obra de alta qualidade e baixo preço, mas também de empreendedorismo em pequena escala.

Finalmente – em alguns sentidos isto é o mais importante –, a ênfase dada por Smith à “superioridade da força” como causa fundamental da capacidade das pessoas de descendência européia em se apropriar de uma cota desproporcional das vantagens da divisão internacional de trabalho sugere que deveríamos ver os limites do poder militar americano – revelados primeiro no Vietnã e agora no Iraque – como uma das causas da atual migração do epicentro da acumulação de capital para um destino não-ocidental.

P: Esse novo rumo da economia global favorece que países? Por quê?

Giovanni Arrighi: Em parte, os países da Ásia Oriental estavam melhor posicionados para se beneficiar da nova conjuntura global por causa de sua disponibilidade de mão-de-obra e de recursos empresariais de pequena escala. Igualmente importantes foram as políticas governamentais que evitaram o endividamento acentuado que forçou países de outras regiões a se submeter às terapias de choque defendidas pelas agências do Consenso de Washington. Em termos gerais, uma robusta tradição autóctone de desenvolvimento baseado no mercado, não-capitalista, anterior à chegada dos europeus, combinada com o impacto da revolução socialista dentro da China, criou condições ótimas para a Ásia Oriental transformar a integração crescente da economia global num instrumento de enriquecimento e empoderamento nacional e regional.

P: Quais são os efeitos da crise financeira americana para países da África, Europa e América Latina? Os impactos nacionais variam de acordo com a estabilidade de cada país?

Giovanni Arrighi: O impacto da crise de acumulação excessiva dos últimos 35 anos foi muito desigual ao longo do tempo e nas diversas regiões. Inicialmente, o impacto geral foi mais negativo para o Norte global do que para o Sul global, que, na década de 1970, beneficiou-se do crédito fácil e da melhoria das condições de comércio. A contra-revolução neoliberal do início da década de 1980, porém, produziu uma inversão súbita da situação, na medida em que os Estados Unidos começaram a concorrer acirradamente pelo capital excedente com o Sul global e as economias da Europa Oriental e da URSS.

A concorrência mais intensiva teve resultados especialmente catastróficos para a África Sub-Saariana, a América Latina e a URSS, mas criou uma situação de incerteza generalizada em outras regiões também, incluindo a Europa Ocidental. Em anos recentes, uma nova inversão parece estar se formando, na medida em que a expansão econômica da Ásia Oriental (e menos da Ásia Meridional, isto é, primordialmente da Índia) acarretou uma melhoria nas condições de comércio de regiões ricas em recursos naturais e um número crescente de países dos antigos Segundo e Terceiro Mundos se libertaram da dependência financeira das agências do Consenso de Washington, principalmente do FMI. Mas se a nova conjuntura irá se traduzir numa melhoria do bem-estar de povos do Sul global continua sendo uma pergunta em aberto.

Como nas fases anteriores da crise global, muito dependerá do que os governos farão individual e coletivamente. Se os governos continuarem a fazer concessões ao capital em concorrência uns com os outros, como fizeram nas décadas de 1980 e 1990, o bem-estar dos povos continuará a sofrer a despeito de melhorias na riqueza nacional. As melhorias no bem-estar exigem não só uma redistribuição de renda e outros recursos para os grupos menos privilegiados, mas também e especialmente investimentos pesados em sua saúde e educação.

P: Alguns dos especialistas que criticam a ajuda do governo americano ao mercado alegam que essas atitudes podem estimular a inadimplência dos bancos, já que eles sempre contam com o auxilio do Estado. Como o senhor avalia essa situação?

Giovanni Arrighi: De uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde, a economia americana tem de passar por uma grande contração para reduzir o enorme déficit na conta corrente de seu balanço de pagamentos, que é insustentável no longo prazo e constitui a principal causa de instabilidade na economia global. A contração pode ocorrer mais ou menos gradativamente, ou através de uma desvalorização maciça do dólar, como já ocorreu até certo ponto, ou através de uma redução absoluta ou relativa do PIB americano. A contração terá fatalmente repercussões negativas sobre a economia global, mas a gravidade dessas repercussões dependerá, em grande parte, de quão gradativamente ocorrerá o ajuste e do grau em que outros países e regiões tenham se libertado da dependência das exportações para o mercado americano e das finanças canalizadas por intermediários americanos.

P: A crise financeira internacional já provocou um prejuízo de quase US$ 1 trilhão entre bancos e empresas americanas. Essas perdas podem se intensificar?

Giovanni Arrighi: Os prejuízos de empresas e especialmente de bancos americanos podem, sem dúvida, aumentar. Como já fez ao longo das crises presentes (e em crises passadas), o FED intervirá para impedir falências que ameacem desestabilizar mais ainda a economia americana. Não obstante as ideologias neoliberais dos mercados livres e auto-reguladores, esse sempre foi e sempre será o papel dele. Isto, naturalmente, resolve alguns problemas (por exemplo, impedindo colapsos súbitos e grandes como o da década de 1930), mas cria outros, como o fomento da irresponsabilidade financeira entre empresas que, com ou sem razão, acham que a mão invisível do Estado irá intervir para salvá-las de seus maus investimentos. Com o passar do tempo, porém, alguém vai ter de pagar pelos maus investimentos. E, na medida em que os credores externos desenvolverem autodefesas eficazes, os consumidores, produtores e contribuintes americanos terão de pagar a conta no final.

P: Uma possível crise de alimentos no mundo pode prejudicar ainda mais a crise financeira internacional econômica? O senhor percebe alguma relação entre elas?

Giovanni Arrighi: A crise dos alimentos é parte integrante da crise da acumulação excessiva e da crise financeira. Num sentido, ela é uma expressão da recente melhoria nas condições do comércio de recursos naturais mencionada antes. Em outro sentido, é uma expressão do desvio de produtos agrícolas (principalmente milho) da produção de comida para a produção de energia (biocombustíveis). E, em outro sentido ainda, ela é uma expressão da especulação e da lassidão financeira americana. Se os governos mobilizarem os recursos disponibilizados pelas melhores condições do comércio de recursos naturais para proteger ou tornar mais auto-sustentáveis os estratos da população mais duramente atingidos pelo aumento do preço dos alimentos, a crise dos alimentos (como a crise energética) poderá até ter efeitos benéficos no longo prazo.

Entretanto, se os governos não fizerem nada ou, pior ainda, optarem por ações que facilitem a transformação das melhores condições do comércio de recursos naturais em lucros especulativos, então a crise dos alimentos poderá ter efeitos mais desastrosos para o bem-estar do que a crise financeira.

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