O Estado de São Paulo
Sociólogo argentino vê sinais de moderação no pontificado de Francisco: progressista na política e conservador na moral.
Quis a Providência Divina, diriam alguns, que a primeira visita do primeiro papa latino-americano da história fosse ao Brasil, maior país católico do mundo. E o papa Francisco fez jus à singularidade desse acontecimento. Em imagens que encheram os olhos de fiéis de todas as partes do mundo, o pontífice argentino Jorge Mario Bergoglio desfilou em um carro simples de passeio, carregou a própria mala e se comunicou em linguagem afetuosa e coloquial, pontuada por expressões locais. "Deus é brasileiro e vocês ainda queriam um papa?", disse Francisco, brincando até com a proverbial rivalidade nacional com os hermanos.
À poderosa carga simbólica dessa aparição, o papa agregou um conteúdo a um só tempo renovador e austero. Reafirmou a opção preferencial pelos pobres, até outro dia considerada subversiva na região e passível de decretação de "silêncios obsequiosos" por parte da Igreja. Condenou a corrupção de autoridades, empresários e cidadãos. Criticou os "ídolos passageiros" do dinheiro, do consumo e do prazer. E exorcizou o discurso em voga sobre a liberalização do uso de drogas.
"Até o momento, o papa Bergoglio começa a construir uma linha simbólica de alteridade, reposicionando a Igreja na direção do Concílio Vaticano II e devolvendo a pobreza ao centro das preocupações do Vaticano", analisa o sociólogo Juan Marco Vaggione, conterrâneo do papa e estudioso das intersecções entre a religião e os direitos sociais e civis no mundo. Ainda não se sabe, porém, como e quanto o novo gestual do papa "vai impactar as políticas concretas da Igreja Católica".
Pesquisador da Universidade Nacional de Córdoba e do Instituto Conicet, na mesma cidade, Vaggione formou-se em direito na Argentina, obteve Ph.D. em sociologia na New School for Social Research de Nova York e atua há anos junto à ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Na entrevista a seguir, o sociólogo mostra como a eleição – e as escolhas – de um papa podem ser entendidas no contexto mais amplo dos embates de uma instituição global e sua inserção no mundo moderno. E sugere que o atual pontífice adotará uma postura moderada, entre o conservadorismo da cúria romana e anseios progressistas manifestados pela própria comunidade católica.
Nos anos 1980, quando João Paulo II esteve no Brasil, 89% da população se dizia católica. Hoje, o número não chega a 57%. Que significados isso traz à visita?
A visita de um papa precisa ser lida em um duplo registro: ela é, ao mesmo tempo, a visita de um líder religioso e de um ator político. Do ponto de vista estritamente religioso, é a visita do líder de uma instituição que vê em crise a influência e a legitimidade que tinha na América Latina, e no Brasil em particular. A própria eleição de Bergoglio como papa expressou, entre outras coisas, essa necessidade da Igreja Católica em reconquistar fiéis nessa parte do mundo. Trata-se também da visita de um papa que é também chefe de Estado do Vaticano, que de alguma maneira revela as fissuras dos nossos sistemas políticos frente à influência do religioso como lugar de encantamento. Ou seja, o êxito de uma figura religiosa e a atração política que ela exerce deixam evidentes as dificuldades do sistema político em manter seu próprio encanto e legitimidade.
Teólogos não alinhados com Bento XVI, como o alemão Hans Küng, manifestaram entusiasmo com o novo papa, ressaltando a escolha do nome ‘Francisco’ e seu despojamento como sinais de ruptura. São mesmo?
Concordo, em um plano simbólico. Até o momento, o papa Bergoglio começa a construir essa linha simbólica de alteridade, reposicionando a Igreja na direção do Concílio Vaticano II e devolvendo a pobreza ao centro das preocupações do Vaticano. E é indiscutível o efeito poderoso que isso tem tido. Resta saber como esse plano simbólico, que é muito importante e eu não subestimo de forma alguma, vai impactar as políticas concretas da Igreja Católica como instituição religiosa.
Em um artigo no Le Monde Diplomatique o sr. sustenta que tanto João Paulo II quanto Bento XVI ocuparam-se em ‘criticar a modernidade para reinserir nela uma Igreja Católica poderosa, visível e ativa que amplie suas estratégias de intervenção política’. Como se deu isso e qual é o cenário hoje?
Quando se analisa as eleições dos papas sob uma perspectiva histórica, não como ações da vontade do Espírito Santo, a Igreja emerge como uma das instituições mais globalizadas que existem. Desse ponto de vista, a eleição de um papa implica na eleição de um líder político global que responde a momentos determinados. A chegada de João Paulo II ao topo da hierarquia católica pode ser lida como a eleição de um papa polonês que respondeu à tensão geopolítica forte entre capitalismo e comunismo. É o momento em que a Polônia se converte em pedra central para o desmantelamento da ex-União Soviética. De maneira semelhante, o papa alemão que o sucedeu é aquele que se volta para a Europa laica, como símbolo de um fenômeno também global da retirada do sentido religioso da política e da esfera privada dos cidadãos. Bento XVI é aquele que vem para recompor a esfera de influência da religião na Europa Ocidental, ressaltando as raízes cristãs da constituição europeia. Agora também, com a chegada de um papa latino-americano, não devemos ignorar a dimensão geopolítica dessa escolha – que se explica, por um lado, pela quantidade de fiéis existentes nessa parte do mundo e, de outro, pelo avanço de outras denominações religiosas na região. O fato de sua primeira visita ocorrer no Brasil coloca isso tudo ainda mais em evidência.
O sr. diz que três fenômenos da modernidade foram combatidas pela Igreja nos últimos anos: o ateísmo, o laicismo e o relativismo moral. Francisco vai travar as mesmas batalhas?
Creio que Francisco não poderá ficar de fora dessas batalhas. Sobretudo daquela contra o que a Igreja chama de relativismo moral e compreende questões reprodutivas e de gênero. A doutrina católica está muito entranhada pela ideia de uma moral única sobre essas questões. A sensação que tenho é de que vai haver uma continuidade entre Ratzinger e Bergoglio no que diz respeito a uma moral sexual conservadora. E ocorrerá a dupla articulação de que falamos em relação à América Latina, região tão caracterizada pela desigualdade social: a reaproximação da pobreza não só em nível doutrinário, mas em termos de estratégia para recuperar um rebanho que vem se perdendo especialmente nos setores mais pobres da população.
Há poucos dias, uma pesquisa encomendada pela ONG Católicas pelo Direito de Decidir mostrou que católicos brasileiros têm visões às vezes opostas à da Igreja. 82% deles apoiam o uso da pílula do dia seguinte, 56% defendem a união entre pessoas do mesmo sexo, 72% aprovam o fim do celibato para padres e 62% são à favor da ordenação de mulheres. A Igreja leva isso em conta?
O hiato entre a doutrina oficial da Igreja Católica e as convicções dos fiéis detectado pela pesquisa é característico da forma de ser católico na América Latina. Há uma distância abissal entre o que a doutrina exige e a forma de se viver as crenças entre nós. Convivem na região uma identificação ainda forte com o catolicismo e um posicionamento mais aberto para a liberdade e a diversidade sexual. Uma mudança política e social que afeta, inclusive, a hierarquia religiosa. É um desafio importante com o qual o papa Francisco terá que se defrontar. Pessoalmente, não acredito na possibilidade de que ele faça grandes mudanças na postura doutrinária nessa direção. Há quem fale de uma maior flexibilidade da Igreja em relação aos recasamentos e divórcios heterossexuais, mas não tenho expectativas de que esse papa possa acomodar muito mais que isso.
Em seu discurso no Brasil o papa sinalizou mais diálogo com outras religiões, mas manifestou rigidez em temas como a liberalização do uso de drogas – defendida pelo ex-presidente Fernando Henrique. Francisco será mais ou menos conservador que Bento XVI?
Para responder à pergunta, temos de considerar o papel de Bergoglio no debate sobre o casamento gay em 2010 na Argentina. Na ocasião, ele demonstrou o que alguns chamaram de "posição moderada" – até flexível em relação a mudanças na legislação estatal, mas claramente conservador no que concerne à moral. Ele não encarnou naquele momento a figura de alguém capaz de promover mudanças na hierarquia religiosa. O que o desempenho de Bergoglio na Argentina deixa ver sobre seu perfil é uma reconexão com o carisma de João Paulo II, com a Igreja dos pobres do Concílio Vaticano II, aliadas à defesa de uma moral sexual conservadora.
Não é curioso que, no mesmo discurso, o papa tenha criticado o culto ao prazer, no exato momento em que o representante por ele indicado para o Banco do Vaticano, monsenhor d. Battista Salvatore Ricca, é acusado de ter um caso com um capitão da guarda suíça – no primeiro escândalo de seu pontificado?
Totalmente. E, nesse sentido, mesmo as hierarquias católicas da ala mais formal da Igreja vêm mostrando esse paradoxo. O ponto é: como a Igreja pode sair dessa contradição? Mantém o discurso de uma moral posta em dúvida por boa parte dos fiéis e até por representantes da instituição ou flexibiliza os dogmatismos sobre o comportamento e a sexualidade? E aqui não falamos só de temas delicados como o casamento gay ou a interrupção da gravidez, mas dos mais correntes, como o sexo antes do casamento e o uso de anticoncepcionais. Entretanto, a Igreja Católica tem sabido manejar o duplo discurso de proibir em público o que se faz em privado. Exemplos disso são os recentes escândalos que atingem a instituição.
Em sua opinião, a polêmica sobre a suposta colaboração do então bispo Bergoglio com a ditadura militar argentina foi esclarecida?
Esse é um tema complexo. O que a mim me surpreendeu foi a forma como, Bergoglio eleito papa, houve a necessidade imediata de esclarecer o episódio, de se afirmar sem demora que não houve tal colaboração. Ao orgulho nacional de termos um papa argentino sucedeu-se uma tentativa de "branqueamento" do passado por parte de setores os mais diversos. Então, "Bergoglio não foi tão conservador no debate sobre o casamento igualitário", "o que se diz dele durante a ditadura tampouco é real", etc. Parecia ser preciso tornar imaculado o papa argentino. O que mostra o quanto as classes políticas ainda sustentam seu prestígio em posicionamentos religiosos. Mais do que especular se Bergoglio colaborou ou não com a ditadura, o que me espanta é a dificuldade que a Igreja Católica Argentina ainda tem de realizar uma autocrítica sobre seu papel no apoio e legitimação do regime militar.
O teólogo brasileiro Leonardo Boff viu na ‘Igreja pobre, humilde, que dialoga com o povo’ de Francisco a reabilitação da Teologia da Libertação, que vicejou na América Latina nos anos 1950 e 60. O sr. acredita nisso?
Creio, como disse, que o papa Francisco tenha a intenção real de voltar a situar a pobreza como sujeito da prédica e da intervenção da Igreja Católica no mundo. E que Leonardo Boff e outros teólogos progressistas têm razão ao identificar nisso um novo sentido para a instituição. Cabe perguntar, no entanto, qual será a construção simbólica feita em torno da pobreza. Ao redor de um conceito podem estar os mais distintos conteúdos ideológicos. Parece-me que a limitante de Bergoglio e da forma como vai armando o seu papado segue sendo um "corpo da pobreza" que não é reconhecido nas dimensões que se conectam com a sexualidade, a reprodução e a liberdade desse corpo. A Teologia da Libertação foi, sem dúvida, uma das tradições mais ricas e justas que a Igreja Católica já produziu. Mas se ela não for pensada em suas intersecções com as novas teologias feministas, terá caráter limitado. A velha Teologia da Libertação também pode ser patriarcal e homofóbica, uma vez que nos anos 1960 tais questões não estavam inseridas da mesma maneira na agenda política. Reinscrever a pobreza como sujeito histórico é um grande avanço, mas para que ele seja mais justo não se devem desconsiderar as desigualdades de um sistema patriarcal que priva de direitos as mulheres e nega autonomia e liberdade aos corpos.
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